Quiescal

A festa e o mote

Praticamente todas as cidades da Região já tinham sua festa disso ou daquilo, e já haviam ingressado no calendário turístico do Estado e garantido um bom dinheiro extra, todos os anos, por conta das tais festas.
Os membros da Associação Comercial pressionavam: uma festa daquelas garantiria, desde que bem feita, pelo menos uma semana de hotéis (eram dois) e pousadas (eram duas também) cheias, e sendo boa mesmo, sobrava gente para cidades vizinhas, assim como, de vez em quando, sobravam para eles hóspedes que só dormiam na cidade, porque estavam mesmo interessados na Festa do Peão de Boiadeiro de São Crustáceo da Serra ou na Festa do Morango de São Benedito das Calças Curtas d’Oeste.
E, da mesma forma, os donos dos (dois) restaurantes da localidade, e gente que tinha quarto sobrando em casa, porque os filhos foram estudar em São Carlos, por exemplo, e pensavam num dinheirinho extra, hospedando gente que viria para a festa, qualquer que fosse, desde que fosse boa.
De tanto ser aporrinhado, inclusive pelo pessoal do Lobo Guará’s Service Club, do qual era membro e, sobretudo, por sua mulher, acabou convencido e, da resistência inicial, passou a ser adepto entusiasmado da coisa.
Não tinha Secretaria de Turismo.
Também, o que menos havia na cidade era turista.
Cidade sem relevância histórica ou artística.
A padroeira da cidade... padroeira?
Não se convencia com essa palavra: padroeira, de padre, de pai.
Não seria melhor madroeira?
Madrinha?
Madrinha é vaca! Dizia a mulher, fazendo o “pelo sinal”!
Enfim, Nossa Senhora da Conceição, festa aos 8 de dezembro.
Nada contra a Santa, em absoluto, minha Nossa! Minha Nossa?
Minha ou Nossa?
Só em Minas Gerais, 111 municípios têm a mesma ...padroeira, com festa e feriado no mesmo dia, claro.
Portanto, nenhum destaque na vertente religiosa da questão.
Atrações naturais poucas, quase nada.
Uma mísera cascatinha num mísero regato, dentro de uma fazenda de um inimigo político, ainda por cima.
Nem pensar.
Não sendo estância climática nem mineral, nem tendo reservas de Mata Atlântica nem relevo interessante, sequer um morro suficientemente alto para alguns malucos escalarem ou se atirarem lá de cima, pendurados num papagaio gigante e sem linha, também não seria por aí.
Verão quente, mas, sem água: nem uma represa ou um rio importante, nada feito.
Inverno chuvoso, poderia esquecer festival de inverno, até porque, sem teatro e sem cinema, só um ginasiozinho municipal muito mixuruca, velho de seis gestões, precisando de muito investimento para atividades artísticas,... melhor esquecer.
E com isso, descartou também, pela ordem:
- a EscalFest – Festa da Cerveja de Escaldado.
Escaldado, a propósito, é a prazerosa e progressista cidade de que se trata, e cuja fábrica de cerveja mais próxima está a 230km de distância, e da qual é o prefeito.
- o FACESCAL – Festival de Artes Cênicas de Escaldado (representar onde? Como?), e
- o CINESCAL – Mostra de Cinema Internacional de Escaldado, que premiaria com o Escaldadinho, nas modalidades Ouro, Prata e Bronze, mas que teria que exibir os filmes em São Crustáceo, onde havia ainda um velho cineminha às moscas.
Festa de Peão? Há várias, todo final de semana tem três ou quatro.
Falta data, é muito caro e difícil bater as mais concorridas.
Diante disso tudo passou a pensar na produção agropecuária local, o que, para muita gente, seria a primeira opção e não a última.
Mas tinha suas (boas) razões: a produção de Escaldado não é em nada diferente das outras cidades da região que, por sua vez, já haviam se adiantado existindo, perto ou longe:
Festa do Morango (várias), Festa da Moranga, Festa da Batata, do Tomate, da Uva (várias), do Vinho, da Garapa, da Cerveja, do Chopp, da Alcachofra, da Goiaba, da Cerejeira, da Maçã, do Mamão, da Melancia, do Pinhão, do Amendoim, do Biscoito, da Broa de Fubá, do Pão-de-Queijo, do Queijo, do Leite, do Café, do Pão-de-Ló, do Marolo, da Rapadura, do Caju, do Cacau, do Chocolate, da Laranja, do Limão, da Mexerica, do Milho (várias), da Polenta, da Mandioca, da Canjiquinha, da Pizza, do Porco no Rolete, do Boi no Rolete, da Lingüiça, da Salsicha, do Frango, da Galinha, do Ovo, da Gemada, do Caranguejo, do Camarão, da Pescadinha, da Sardinha, da Lagosta, do Mar, da Tilápia, da Primavera (várias), das Flores (várias), das Rosas, das Hortênsias, dos Cravos, do Cravo e Canela, da Cachaça, Julina, Junina, Havaiana, do Divino, da Lavadeira, do Cavalo, Vaquejada, Folclórica, da Viola, do Violeiro, da Viola e do Cordel, do Cordel e da Viola, além das várias Festas Agropecuárias, Festas Agropecuárias e Industriais e Festas Agropecuárias, Industriais e Comerciais, que são o artifício das cidades como a sua, com nada de destaque.
Só que Escaldado tem um problema que impede até a utilização do genérico, que é não ter nenhuma indústria de nada, nem de lingüiça, nem de enxada, e um comerciozinho pobre.
Pois se nem funerária tem!
Caixão é feito fora, sabe Deus onde, e adquirido em São Benedito.
Quer dizer, nem uma festa de Finados, como aquela do México, que vira na TV, daria para fazer.
Havia que ser algo específico e não utilizado, ainda que não exclusivo.
Foi assim que chegou à brilhante concepção da “QUIESCAL” – Festa do Quiabo de Escaldado!
Escaldado, lembrou-se, exporta quiabo para a CEAGESP e para o Mercado Municipal de São Paulo!
Os melhores restaurantes de São Paulo servem, quando servem quiabo, o produto de Escaldado (não dá para garantir, já que a rastreabilidade do quiabo é baixa, mas a chance de que seja é grande)!
Seu sogro, lembrou-se e inspirou-se, é um dos importantes produtores de quiabo da região e o seu desafeto político não produz quiabo, porque não gosma, quer dizer, porque não gosta (riu-se).
De pronto pensou em frango com quiabo e em pau-de-sebo, devidamente renomeado como pau-de-gosma ou pau-de-baba, com bons prêmios aos corajosos trepadores.
E caça ao leitão enquiabado!
E ... e o que mais? Embatucou.
Meio sem saber o que fazer, pensou em conversar com a mulher ou em reunir o secretariado, ou ambos, anunciar a boa idéia e pedir sugestões.
Afinal, havia se dedicado bastante até obter uma idéia tão criativa e original, estava na hora de ter colaboração ao invés de apenas cobrança.
Por via das dúvidas, pediu à senhorita Secretária Municipal que levantasse, na Internec, no tal do Gúgul, umas receitas boas de comida de quiabo, porque ele mesmo, além de não gostar, só conhecia duas formas: refogado, com arroz e feijão, ou a galinha com quiabo.
Era preciso saber se haveria mais o que fazer com aquilo, numa quantidade que justificasse a “Quiescal”.
A menina, que ficava na Prefeitura mexendo no computador, sem entender e sem querer entender o motivo de tão estapafúrdia demanda, fez a pesquisa e apresentou o resultado das quinze primeiras páginas:
-Tá bom assim, Prefeito?!
O homem ficou espantado com tanta alternativa!
Arroz com frango e Quiabo,
Caril seco de Quiabo,
Carne de panela com Quiabo e batata doce,
Caviar de quiabo com legumes tostados – Alex Atala, em negrito,
Como tirar a baba do Quiabo,
Cozido de cordeiro com Quiabo,
Emulsão de nabo com lulas e quiabo frito,
Ensopado de quiabo (Khoresh-e Bamieh ),
Espetinho de quiabo com bacon,
Farofa de Quiabo,
Frango assado com Quiabo,
Frango com Quiabo,
Frango com Quiabo da Letícia Spiller, em negrito também,
Gel para cabelo seco,
Guisado de carne moída com batatas e Quiabo,
Lagosta com molho de dendê e caviar de quiabo,
Milho com Quiabo,
Pastel de carne e Quiabo,
Picadinho de carne com Quiabo,
Quiabo à crioula,
Quiabo à milanesa,
Quiabo a Escabeche,
Quiabo à grega,
Quiabo atomatado,
Quiabo com bacalhau,
Quiabo com bacon,
Quiabo com batatas, à moda indiana,
Quiabo com camarão,
Quiabo com camarão seco (caruru),
Quiabo com carne seca,
Quiabo com costela de porco,
Quiabo com galinha,
Quiabo com lingüiça,
Quiabo com milho e tomate,
Quiabo com polenta,
Quiabo com tomate e gengibre,
Quiabo em conserva para entradas e petiscos,
Quiabo Frito,
Quiabo Indiano,
Quiabo no azeite,
Quiabo no bafo,
Quiabo refogado com alho e shoyu,
Refogado de Quiabo,
Robata de quiabo,
Salada de Quiabo,
Sopa de frango com quiabo e angu de milho,
Torta de carne e quiabo.
Leu e releu.
Coisas que ele não sabia o que fossem, como caril, ou como robata e shoyu, comida japonesa, isso sabia; coisas que talvez nem fossem gostosas, como frango com quiabo, mas a dona da receita, pelo que se lembrava, era!
E, quem sabe, convidada para a festa, a sen-sa-cio-nal QuiEscal, Letícia compareceria e seria atração... de quanto seria o cachê?
Pedir para a secretária municipal investigar, anotou mentalmente.
Alex Atala, famoso dono de restaurante cinco estrelas: Caviar de Quiabo!
Caviar de Quiabo?
Mas caviar não são ovas de peixe?
Como diabos o homem conseguia tirar ovas de quiabo?!
E coisas que até soavam bem, deveriam ser gostosas, por que não?
Devaneou: barraquinha de pastel de carne e quiabo.
E também de queijo e de palmito, para quem não come carne.
A R$ 1,50 o pastel, que custasse 50 centavos cada, mil pastéis, mil reais; fora a garapa, a cerveja... será que quiabo dá suco?
Outra barraca de espetinho de quiabo com bacon. Bacon é toucinho.
E sem toucinho, espetinho laite de quiabo, ô diabo! Era capaz de dar negócio!
Além do que, havia na lista coisas que não eram de comer, mas que podiam render um, como é que é?
Uorquichópi!
Uorquichópi de Gosmética: Gel de Quiabo para Cabelos Secos! Beleza!
Uorquichópi de Culinária: Como tirar a baba do Quiabo!
E sorteio de utensílios especiais para o preparo de Quiabo, para os participantes do uorquichópi!
Um livro de receitas de Quiabo, exclusivo da “I QuiEscal – 1ª Festa Nacional... não!
"1ª Festa Internacional do Quiabo de Escaldado”.
Claro: Internacional, pois se até comida japonesa e indiana e grega e árabe havia na lista!
Então!?
E, claro, não seria tudo na primeira.
Deixaria algumas coisas e receitas guardadas para a segunda e a terceira festas!
E comida americana também: a Secretaria Municipal pegara no Gúgul, em ingrêis, que Quiabo é Okra e serve para fazer Gumbo.
Havia uma folha anexa:
Gumbo
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Gumbo (pronuncia-se gambo) é o prato mais marcante da culinária Cajun da Louisiana (sul dos Estados Unidos). É um guisado ou uma sopa grossa, geralmente com vários tipos de carne ou mariscos, que se come com arroz branco, podendo constituir uma refeição completa.
Gumbo é o nome que se dá na
África Ocidental (região do actual Benin) ao quiabo que, não sendo essencial, é comum neste prato e é provavelmente o que lhe deu o nome. Este cozinhado, que não precisa de ingredientes de alta qualidade é característico das populações criolas, originadas das sociedades esclavagistas.
A maneira tradicional de engrossar o gumbo é com o roux (para quem não sabe, significa
vermelho ou ruço) que é farinha de trigo “queimada” em óleo. Quando a mistura ao lume começa a mudar de cor passa primeiro a castanho claro e depois, rapidamente, a castanho-escuro. Um roux claro (cor de café-com-leite) engrossa mais o guisado do que um escuro (cor de chocolate).
Quando o roux está pronto, podem deitar-se-lhe em cima os vegetais finamente cortados (
cebola, alho, aipo, cenoura, ervilhas ou outros) e finalmente as carnes e mariscos. Uma carne que é típica da culinária cajun é a andouille, muito semelhante ao chouriço português; é também frequente associar aves e camarão ou lagostim-de-água-doce.
Para além do
sal, cebola e alho, fazem igualmente parte do tempero de muitas preparações cajun, como o gumbo, o tomilho e a pimenta-de-Cayenne. Outro tempero associado ao gumbo é o pó de sassafrás.
Não faz mal que o Quiabo não seja essencial no Gambo, em Escaldado seria!
Poderiam convidar algum dono de restaurante de Americana que fizesse a tal comida.
Pensou: comida americana legítima, com o legítimo quiabo especial de Escaldado? Então?
Onde mais alguém encontraria isso?
Em lugar nenhum do mundo!
Só na QuiEscal!
Reuniu a tropa!
O Secretariado quase todo (menos o de Saúde, Médico que, nesse dia, dava plantão no Postinho de São Benedito das Calças Curtas, próspero município vizinho; e o da Educação e Cultura, que tinha aula no supletivo em São Crustáceo, mas não fazia mal: seu cunhado, Secretário da Fazenda, estava, e era ele quem mais interessava no momento, porque, apesar de ser o que era, era bom de cálculo de dinheiro e irmão da sua mulher e podia ajudar a vender o peixe, ou o quiabo, no caso, para a digníssima, pensou).
Apresentou o projeto: (a Secretária Municipal fizera no pauêrpóin, com direito a uns retratinhos de quiabo, conseguidos no Gúgul também)
- Escaldado teria sua festa! Única! Exclusiva! Inédita! Uma baba! A Espetacular (limpou a garganta, impostou a voz) QUIESCAL – FESTA INTERNACIONAL DO QUIABO DE ESCALDADO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Ficaram todos se olhando.
O cunhado balançou a cabeça e disse em voz baixa: - Pirou de vez!
E ele: - Mas vocês não estão me enchendo o saco, desde antes do começo da gestão, que eu tinha que arrumar uma festa prá vocês se... quer dizer, pro município arrumar um dinheiro extra, um reforço no orçamento municipal da cidade? Então! Arrumei sô! A ES-PE-TA-CU-LAR QUIESCAL! FESTA INTERNACIONAL DO QUIABO DE ESCALDADO! – Repetiu, em voz alta de locutor de serviço de alto-falantes, os braços abertos.
Desde a última campanha para prefeito, deixara de dizer Iscardado, de tanto mulher e filha lhe repetirem e fazerem repetir ES – CAL – DA –DO.
Não pegara gosto, mas pegara o vício.
O Secretariado ficou mais espantado ainda!
O homem tava falando sério!
E o ilustríssimo prefeito devaneando de novo, em voz alta, vendo um monte de mulher bonita desfilando diante de dele, de biquini:
- A Segunda Princesa do Quiabo! A Primeira Princesa do Quiabo! A Rainha do Quiabo!
- E o concurso infanto-juvenil da Princesinha do Quiabo, Rainha do Quiabo de Amanhã! Pensa bem!
E retomando o discurso:
- E, craro, não podemo esquecer desse herói anônimo, o produtor de quiabo! Prêmio para o maior quiabo da safra! Prêmio para o Produtor Símbolo do Quiabo, meu excelentíssimo sogro!
E, virando-se para o cunhado secretário:
- Teu pai, sô!
- E, pensa bem, podemo apresentá um projeto criando a Secretaria Extraordinária da Indústria e Comércio de Escaldado, que terá a nobre missão de criá o Pólo Industrial do Quiabo! Escaldado deixará de exportá o artigo “in natura”! Vamo agregá valor ao nosso quiabo, à nossa riqueza naturar! Vamo binificiá o quiabo em Escaldado e vamo binificiá o Trabaiadô de Escaldado e vamo binificiá minha famía, coincidentemente, dona daquele terrenão largado lá perto do trevo, que vai sê ótimo para imprantá o Pólo. E vamo dá os terreno pras indústria que quisé ví, com isenção de IPTU por déis... não, por vinti ano!
- Pensa bem! Vai sê bão! Escoiê e crassificá os quiabo; selecioná; lavá; secá; embalá em várias embalagi diferente; armazená em armazém frigorífico; transportá... Vai sê uma beleza, o Cicro Industriar do Quiabo! Quiabo em conserva, quiabo congelado, uma maravía!
- Vamo tê escola SENAI e SENAC! Vamo tê firma de transporti... de logística... preciso me lembra que transporti agora chama logística...
Mas foi chamado de volta à realidade pelo cunhado secretário, que lhe puxava a manga e dizia:
- Ói qu’eu quero uns terreno nessa maravía que cê tá rezano aí...
- Eu num tô rezano nada, sô! Tô pensano na maravía que vai sê isso daqui uns ano...
Reparou que a Secretaria lhe pusera outro papel na mão.
Leu rapidamente:
Quiabo
Informações sobre o Quiabo, características, vitaminas, benefícios e propriedades
Quiabo: rico em vitaminas A e C
CLASSIFICAÇÃO CIENTÍFICA
Reino: Plantae
Divisão: Magnoliophyta
Classe: Magnoliopsida
Ordem: Malvales
Família: Malvaceae
Gênero: Abelmoschus
Espécie: A. esculentus
INFORMAÇÕES
· O quiabo é um vegetal de cor verde e formato alongado e fino.
· Cada 100 gramas de quiabo possui, aproximadamente, 35 calorias. Portanto, é um alimento de baixo nível calórico.
· Possui uma boa quantidade de vitaminas A e C.
· Com relação aos sais minerais, possui: fósforo, ferro e cálcio.
· O período de safra é de dezembro a março. Porém, pode ser encontrado em todos os meses do ano.
· É consumido na forma de refogados, sopas e ensopados (com carne).
· Ao cozinhar, o quiabo solta um líquido viscoso, popularmente conhecido como "baba" do quiabo.
· É um vegetal de origem africana.
http://www.suapesquisa.com/alimentos/quiabo.htm
Precisava do Secretário de Saúde.
“Vai dar para tirar mais coisas daí”, pensou, pensando nas vitaminas e nos sais: “Quem diria que o diabo tem fósfo, sô?!”
Sabia, fósforo é fortificante.
E ferro, e cálcio também!
Quando criança tivera que tomar vidros e vidros de líquidos viscosos ou asquerosos, com esses três: Ferro, Cálcio e Fósforo!
Então: “Pensa bem – pensou – mais quiabo na merenda escolar, menos remédio pra criançada tomar!” .
E, enquanto lia, a discussão corria solta entre o Secretariado.
Voltou à realidade quando, de repente, cessou o burburinho; o Sr. Secretário Municipal dos Transportes batera na Mesa, e, com um tom de voz alterada, berrou:
- ‘Ceis tão tudo lôco! Quar festa nem meia festa, ainda por cima do Quiabo! E internacionar! Ora, Sêo Prefeito, faça-me o favor!
- Favor de quê, pode-se saber, prezado secretário Capivara? Perguntou o Prefeito, irônico, usando o detestado apelido do seu secretário, dono da bicicletaria e motocaria local e, por isso mesmo, o mais capacitado em transporte urbano e, por que não dizer, rural?
- Mais Cráudio do céu! ‘Cê tá lôco? ‘Cê qué mudá seu apelido de Cráudio Espiga prá Cráudio Quiabo, é isso ómi?!
Alguns dos colegas riram discretamente, por saberem que o prefeito, embora tenha usado o apelido na campanha, também não gostava de ser lembrado pelo tufo de cabelos meio avermelhados que lhe ornavam o cocoruto.
- Num tem nada a vê co’apelido de ninguém! É voceis, ôcê incrusive, sêo Capivara, que vive me enchendo o saco, e agora que eu consegui tê uma baita duma idéia boa dessa, vem me dizê que tô lôco? Lôco tão ocêis, si num quizé fazê essa festa! Pensa bem!
E, discursivo, elogiou o alto teor de ferro, de fósforo e de cálcio que essa grande e desprezada riqueza natural da cidade e que podia fazer a geração atual e as futuras de escaldadenses mais fortes, com mais saúde.
Isso sem mencionar que é um alimento de baixa caloria, ou seja, já é “laiti” por natureza!
Então! Pensa bem!
Quanta coisa boa podiam fazer, desde que tivessem coragem e cabeça, não saíssem da reunião para a rua dizendo que o Cláudio Espiga estava louco, mas que o excelentíssimo titular do poder executivo é um gênio e bolou o que colocará Escaldado num novo patamar no concerto dos municípios da região e, por que não dizer, do Estado!
O cunhado sussurrou: Ói o ómi di novo no palanque!
E, em voz alta: - Apoiado! Tem razão meu digníssimo bródinló! Desde a campanha que nóis ‘tamo’ buscano isso. Agora que ele achô, é isso mêmo! Não podemos nos furtá a por em prática essa maraviósa idéia só porque para alguns ela pode num sê maraviósa. E daí? (daí que paro de escrever em dialeto, porque cansa).
-Vamos desistir sem começar? Nunca fui homem de fugir da briga, vamos brigar! Por Escaldado, quem está conosco?!
Todos, inclusive Capivara, levantaram as mãos , animados pelo discurso e sabedores que, para tanto entusiasmo, havia de haver algo não dito, mas que mereceria atenção.
Discutiram e nomearam uma Comissão que, por enquanto, seria nomeada por Ato Secreto, não por falta de transparência, absolutamente, mas para preservar o segredo de estado.
No caso, de município.
Mais tarde, em “off”, o Secretário Capivara perguntou ao Secretário Cunhado o porquê daquele apoio todo, que aí tem.
- Pois tem mesmo! Tem que, se esse negócio der certo, vai ser bom para todos, inclusive nós. Como diz o Espiga, pensa bem, um bando de gente, por menos que seja, vai ser bom. Hoje em dia, quem que vem para cá? Só os vendedores de sempre. Aí no caso não, e a gente pede para a mídia dar uma cobertura, pelo menos nos jornais regionais.
- Por outro lado – continuou, com um arzinho esperto -, se não der certo, a cidade vai aparecer na mídia pelo rídiculo que o prefeito ridículo fez ela passar. Ele fica mal mas nós não. Seremos os leais secretários que tentamos demovê-lo dessa idéia amalucada etc. De qualquer jeito, vamos aparecer, e bastante, é ou não é?
O outro limitou-se a um riso cúmplice e, batendo nas costas do colega, a dizer:
- Pensa bem! Pensa bem!
A Comissão Organizadora da Primeira Festa Internacional do Quiabo de Escaldado, a 1ª QUIESCAL (ou Escaldado’s Okra International Fest – não podiam esquecer da internacionalidade da coisa) reuniu-se algumas vezes para trabalhar sobre as idéias do senhor prefeito e já definiram que vai ser em março: já foi ano-novo e carnaval, o iptu e o ipva, o material escolar e outras despesas de começo de ano, o dinheiro começa a ficar disponível; fim de verão, nenhum feriado importante, conforme verificara a senhorita Secretária Municipal no “tar do Gúgul” e em (
http://www.brasilazul.com.br/feriados-marco-datas-comemorativas.asp)
Feriados e datas comemorativas de março
01 – Dia do Turismo.03 – Dia Nacional do Meteorologista.05 – Dia da Filatelia.05 – Dia do Filatelista.07 – Dia do Fuzileiro Naval.08 – Dia Internacional da Mulher.10 – Dia do Sogro.11 – Dia do Motociclista.12 – Dia do Bibliotecário.12 – Dia do Industrial do Café.14 – Dia da Poesia.14 – Dia do Vendedor de Livros.15 – Dia Mundial do Desenhista.15 – Dia Mundial do Consumidor.19 – Dia da Escola. 19 – Dia do Artesão. 19 – Dia do Carpinteiro. 19 – Dia do Marceneiro. 21 – Dia do Início do Outono. 21 – Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial. 22 – Dia Mundial da Água.23 – Dia Mundial da Meteorologia.24 – Dia Mundial de Combate à Tuberculose. 26 – Dia do Cacau.27 – Dia do Artista Circense. 28 – Dia do Diagramador. 28 – Dia do Revisor. 31 – Dia da Integração Nacional.
Não que o dia da água ou da sogra não fossem importantes, pel’amor!
É que não tinham a devida repercussão...
Consideraram que, sim, chove.
Porém menos que em novembro, dezembro e janeiro; quase igual a fevereiro e com a mesma temperatura média dos meses mais chuvosos.
Então, ficou sendo março que, de quebra, tinha o dia 16, antes do Outono, disponível para o “Dia do Quiabo” por não ser dia de coisa nenhuma ainda e de nenhum santo da igreja, que beleza!
Aguardemos então, o lançamento oficial da “QUIESCAL”.
Em março, todos a Escaldado.
O Projeto promete e o Prefeito cumpre!
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Capítulo IV - Tem, mas acabou! - Parte II

Agora, algumas coisas merecem mais cuidado:
Feira livre, por exemplo.
Em São Paulo, se você quer o melhor, seja abacaxi, peixe, verdura, deixe por conta do feirante:
- Você escolhe para mim um mamão formosa? (O corretor do Word, ignorante, quer que eu escolha: ou é “um mamão formoso” ou “uma mamona formosa”. Ignorar sentença? Não, ignorar o Word!).
- Para (consumir) quando?
- Para depois de amanhã.
E, meio sério, meio brincando:
- A que horas?
E vai o lépido rapaz sopesar os formosas mais formosos, de acordo com o pedido, certo de que você voltará na semana que vem.
Já em Cudumundópolis do Sul, esse mesmo pedido, é entendido como
- eu sou um rematado idiota e quero que você me f*, por favor.
Porque, certamente, o cara vai escolher pelo menos duas laranjas passadas para a sua meia dúzia, ou um mamão com um lado – o que você não está vendo – machucado, e assim por diante.
E a maior ofensa possível é tirar dois feirantes do papo para que um te atenda! Principalmente se forem de sexos opostos!
Certamente a vingança virá!
Você levará quase só ou apenas porcarias para casa!
Nunca faça isso: é preferível voltar depois, ir ao fim da feira, disfarçar e comprar mais tarde o que você precisa.
Mas não interrompa o colóquio, nunca!
E porque não ir a outra banca?
Ora, porque não as há!
As feiras em Curitiba são de uma mísera quadra, sem direito a repetição.
As poucas que existem não competem entre si: são todas a mesma m*!
Há as feiras noturnas.
Bom.
Apenas que o atendimento e a qualidade são piores.
Uma boa idéia jogada fora.

Acresça-se a isto o fato de que todos os bons profissionais de Curitiba apenas estão lá, mas não são de lá.
Como, obviamente, são a minoria, acabam por não dar conta e/ou por terem junto profissionais de padrão inferior e/ou por contaminar-se pelo nível de atendimento inferior ou, enfim, dada a entropia dos sistemas, sendo afetados pelo fenômeno.
E azar dos consumidores, clientes e a da praça em geral.

Outra é assim:
- Tem, mas acabou...
- Será que teria em outra loja de vocês?
- Não sei...
- Você pode consultar?
Não responde e vai telefonar. Volta:
- Tem. Na loja do Alto da Quinze.
- Ah, que bom! E?!
- O Sr. vai lá buscar?
- Você não vai mandar trazer?
- Não, veja bem, é outra gerência e blá blá blá...
É sempre melhor consultar antes, por telefone, porque, se puderem complicar, ninguém vai facilitar.
Mesmo que sejam coisas tão difíceis de transportar de uma loja para a outra como um travesseiro...
Ás vezes me lembra de meu amigo Gilberto, bom baiano, que dizia que se via ser alguém de SP, no andar.
Porque “paulista anda como quem quer chegar”, dizia. “Baiano, anda pensando se chega”.
E acrescentava, para me provocar: a melhor coisa de SP é o vôo direto a Salvador.
Ora, diria eu de Curitiba que a melhor coisa é o vôo direto a SP.
Principalmente se você precisar de algum serviço.
Aliás, se precisar de gente para trabalhar, também: a melhor sala de entrevistas de Curitiba é o aeroporto de Congonhas!

Fazendo conhecimentos e amizades

Difícil, mas possível.
Hoje, por exemplo, o Diretor Comercial me procurou para dizer que esteve num churrasco sábado, e conheceu o cara de RH da XYZ, grande multinacional aqui instalada, e que fez amizade com o cara, e vai me passar nome e telefone, já que não nos conhecemos, mas eu vou gostar dele.
“Um carioca muito simpático”.
Aí, ele para a narrativa, pensa um pouco, e diz:
- Já reparou que todas as pessoas simpáticas que se conhece aqui, não são daqui?!
Já havia reparado.
Da mesma forma como todos os que são eficientes, eficazes ou profissionais.
Como o garçom atencioso, o segurança educado, o mecânico que cumpre, a balconista interessada, o manobrista sem complexo de Rubinho etc etc, nenhum deles nasceu em Curitiba.
Podem até ser do Paraná, mas são de Foz, Londrina, Maringá, Ponta Grossa e afins.
São os “VIPs” (“vindos do interior do Paraná”).
Os curitibocas parecem ter feito curso para ficarem do jeito que são!

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Capítulo III - Tem, mas acabou! - parte I

Sério! Senti-me no velho programa do Jô Soares, quando o personagem balconista gritava para alguém “lá dentro”:
- Valdjiiir! A gentche temossh tal coisa?!
Resposta incompreensível.
Vira-se o balconista para o freguês:
- Contribuintchi, tem, mas acabou.
Igualzinho me disse a moça, depois de eu esperar 10, 15 minutos (o meu tempo é bem mais barato que o da televisão, então pode).

Forante as três ou quatro vezes em que saí sem ser atendido, depois de estar sentado à mesa por também bons 15 minutos.
É como ser invisível.
Não é uma boa sensação ser assim ignorado.
Aprendi que, num restaurante japonês, se bate palmas duas vezes, bem fortes, para chamar a atenção de quem atende – ou deveria atender.
É uma medida extrema que, no Japão, enche de vergonha quem trabalha no restaurante.
Mais do que chamar a atenção, é uma reprimenda grave para um fato gravíssimo: ignorar um cliente.
Usei o aprendizado em Curitiba, e deu muito certo: de repente, por alguns instantes, o restaurante - japonês - ficou absolutamente silencioso e todos nele, todos, olharam para mim.
Dois garçons ruborizados, depois da bronca da patroa, vieram me atender e consegui o café e a conta e um pedido de desculpas, “a casa está muito cheia etc e tal”.

Mas anotei com letras de ouro no meu querido diário o dia em que, na quarta vez em que ia à padaria, a senhora do caixa disse-me “Bom dia!”.
E quase sorriu!
Juro!
Pegou-me de surpresa, quase fico sem resposta diante do inusitado bom dia!

No mais, vá precisar em Curitiba, de um eletricista ou encanador ou pedreiro, carpinteiro, vidraceiro, mecânico, reparador de computador, ou qualquer outro profissional, autônomo ou não, que seja, supostamente, um prestador de serviços!
Certamente:
- você será mal atendido,
- nenhum prazo será cumprido,
- o serviço ou não será feito ou será mal feito,
- você terá que se adaptar às condições do prestador,
- você ouvirá, no mínimo uma vez, “não é problema meu”,
- você ouvirá, no mínimo uma vez, “o que é que eu posso fazer?” ou “não posso fazer nada!”,
Você ficará puto da vida, o que não adiantará nada:
os caras não apenas não têm receio de perder o freguês, como parecem fazer questão de que não se volte a incomodá-los!

Por exemplo:
Todos os meses se compra, na empresa, um grande bolo e salgadinhos, para comemorar os aniversariantes do mês.
Na última sexta-feira de cada mês, faz-se uma festa de escritório.
Novembro, idem.
Só que, em dezembro há férias coletivas, então, na festa de confraternização comemora-se tudo junto: fim de ano, veteranos, aniversariantes de dezembro.
Então, este mês, queremos um bolo de três andares, incrementado e coisa e tal.
Diz a confeitaria:
- Ah, mas é difícil...
- Como, difícil?!?!
- É que a gente sempre faz um bolo simples, sem camadas...
- Sim, entendo. Então, este mês, ao invés de um bolo, vocês fazem três bolos e põe um em cima do outro!
- Mas é difícil...
- Qual é a dificuldade?!
- Acho que nós não temos tabuleiro ...
- Mas é o mesmo tabuleiro de todo mês!
- Pra quando vocês querem?
- Dia tal.
- Sexta-feira?! Ih, vai ser difícil... Acho que dá para fazer, mas vocês têm que devolver o tabuleiro no sábado, sem falta.
- Ah, é? Então é o seguinte: - Não, obrigado, não queremos dar trabalho e atrapalhar vocês. Você conhece alguma confeitaria para nos indicar?
Espanto!
- Não? Pode deixar, nós encontramos alguém que faça o bolo para nós, não precisa se incomodar!
A filial local da padaria paulistana faz.
Não sem antes consultar a matriz, claro!

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Capítulo I - Dirigir em Curitiba

“...não permita Deus que eu morra, Sem que volte para São Paulo...”
Oswald de Andrade


Para um paulistano, a primeira impressão é de que seria muito fácil: ruas bem calçadas, sem a buraqueira ou remendeira mal feita que há em SP, quase todas as ruas e avenidas de mão única, e quase tudo muito reto, direto e certo.

Mas a primeira impressão é logo substituída por segunda e por terceira, e mais...

A segunda é relativa à sinalização: além de rara, ridícula!

Há placas bilíngües, em português e em inglês, e pérolas como “Parque Barigui” “Barigui Park”, e “Santa Felicidade” e “Santa Felicidade”.

Ué?! Não seria “Saint Felicity” ou “Saint Happiness” ou “Holly Happiness” or something like isso?

Se a Ópera de Arame é Wire Opera, porque não?

Vai entender...

Depois, como as pipocas, uma placa aqui, ali, uma placa além, esparsas, de sorte que é muito fácil se perder.

Além do que, as ruas são, literalmente, quilométricas, atravessam a cidade.

Mas algumas são interrompidas e, embora acabem, sejam becos sem saída, continuam depois da interrupção.

Mesmo que depois de dezenas de metros, por exemplo, com dois ou três edifícios entre um segmento e outro, continuem com o mesmo nome e numeração contínua.

Quer dizer, o sujeito pega um roteiro via guia da internet, e dá de cara com uma portaria de edifício.

Voltar não pode, porque é contramão.

Contornar é complicado, porque nunca se sabe qual das próximas (direita? esquerda?) é mão para onde (parece que nunca é aquela que parece).Sinalização não há, então, é arriscar.

Perguntar é besteira, porque, aparentemente, ninguém nunca sabe nada.

Impressionante a má vontade para dar informação.

O “não sei”, dito sem nem olhar quem pergunta ou com ar de desdém ou de não é problema meu, é padrão.

Frentista de posto de gasolina também nunca sabe nada das redondezas.

Taxista sabe, mas informa mal e porcamente, ou não informa.

E é besteira telefonar para o lugar aonde se vai e pedir referências e informação sobre como se chegar lá de carro, porque as informações são sempre truncadas ou codificadas:

- Pega a rápida!

Rápida? Que Rápida?

- É a avenida que vai do fim da Visconde até ...Visconde?

Qual Visconde? E o nome da rua não deve ser Rápida, né?

- Não! A Rápida tem nome, mas eu não sei. Todo mundo conhece por Rápida.

Sim, todo mundo conhece, menos quem não conhece...

E é tudo assim: a Visconde, a rápida, a BR (há pelo menos duas BRs – 116 e 277; viscondes há sete, “a Visconde” é a do de Guarapuava).

É claro que toda cidade deste país tem sua rua ou avenida Sete, sua Praça XV (15, não “chísve”, que é marca de uísque); sua Brigadeiro ou Marechal.

Mas, exatamente por isso, quase todo mundo sabe explicar e explica.

Exceto em Curitiba, onde o “foda-se” é ligado no automático de manhã, e... foda-se!

Então, é preciso paciência, mas outro tipo de paciência, diferente da de SP, onde até quem nunca foi a lugar nenhum, se tiver um mínimo de perspicácia e souber ler a sinalização, vai e chega a qualquer lugar.


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Fúria

Um menino encapotado num casaco impermeável, passadas firmes pela calçada deserta, debaixo de uma chuva que não para nunca mais, fria, forte, noite a dentro.
Uns onze anos de idade, magricela, andando sob a chuva intensa de não se ver adiante, resoluto, rápido, sem correr, os olhinhos faiscando, com ou sem relâmpagos no céu preto, muito tarde para um garoto estar na rua.
Aliás, ninguém estava na rua, exceto o guarda-noturno, bicicleta encostada na porta do açougue, sob a marquise, encolhido, apitando de vez em quando, pró-forma, que, com aquele temporal, ninguém o ouviria mesmo.
O menino parou.

Diante da porta do sobradinho de conjunto habitacional, geminado, igual a outros vinte ou trinta acima e abaixo na rua, e em frente também; sob a varandinha que mais serve de suporte de vasos do que de abrigo de gente, até que abrem a porta e ele entra.
A mãe, com uma toalha numa das mãos, pede que espere, mas não.
Resoluto, determinado, segue nas mesmas passadas de há pouco.
A avó, com uma fumegante xícara de chá, o aroma de hortelã no ar, diz à filha que deixe.
Ela olhou nos olhos do menino, por um instante, quando entrava.

Os olhos negros estavam aparentemente mais negros, firmes.
- Ele está possuído! Diz a velha à mãe do garoto. – É fúria! Não adianta você fazer nem falar coisa nenhuma, enquanto ele não desencapetar disso. Deixa, filha, deixa...
A mãe do garoto fechou a porta e ficou parada, olhando o menino que subia a escada do sobrado, deixando um rastro de água pelo caminho, os tênis velhos, encharcados, fazendo chóc, chóc, e rangendo, a borracha molhada do solado no piso de lajotas de segunda, lisas, frias.
Nem uma palavra, o menino subiu e dirigiu-se ao quarto da frente da casa, dos pais.

Entrou no banheiro onde o homem, mergulhado numa banheira pequena, luxo do sobradinho, as pernas dobradas, cabeça e joelhos fora da água quente que enchia o banheiro de vapor, meio dormindo, um sorrisinho beatífico nos lábios finos.
Parado ao lado da banheira, o menino pôs na borda, com muito cuidado, dois maços de cigarros que tirou dos bolsos do casaco, e um isqueiro descartável, amarelo.
Abriu o zíper da calça e urinou um jato forte de urina retida há muito, na cabeça do pai que, sentindo o jorro quente, acomodou-se mais na banheira e esticou mais o sorrisinho.
De repente, abriu os olhos e recebeu neles a urina quente do garoto!
- Que porra é... – Agora, na boca suja!
Mergulhou a cabeça na banheira.

Meio levantou-se, indeciso, o ar lhe parecendo frio, titubeante, mãos na borda da banheira.
O menino saiu andando, fechando o zíper, enquanto o homem esbravejava, gritava e xingava no banheiro; a mãe subia as escadas correndo e gritando e querendo entender; a avó tomava o chá antes que esfriasse de vez e dizia a si mesma que era melhor deixar que a fúria geral passasse.
No banheiro ‘social’, o menino abriu o chuveiro e meteu-se na água quente, completamente vestido.

Depois de alguns minutos, sentindo-se aquecido, tirou tênis, meias, toda a roupa, que foi amontoada sobre a parede do box de acrílico e, a cada arremesso, uma crista de pingos d’água, saída das peças de roupa, molhava o teto, a parede em frente, a porta e o chão do banheiro.
Nu, levantou o rosto para a água quente, lembrou-se do homem e gargalhou!
A risada alta, infanto-juvenil, forte, quase convulsiva, espalhou-se pelo sobradinho.
Na cozinha, aguardando com o chá num bule de ferro ágate azul, com o esmalte meio machucado, a tampa amassada de tantas batalhas de cozinha, a avó disse a si mesma:
- Pronto! Passou! O diabo vai ser o porqueira do pai desse menino agora...
Na banheira, meio grogue, o homem não era capaz de concluir se havia sonhado, se havia sido mijado ou se havia se afogado...
Dois maços de cigarros na beira da banheira.
“Que bom! Não vou precisar sair para comprar... bom, eu não iria mesmo de qualquer jeito: mandava esse bosta desse moleque...” pensou, abrindo um dos maços, tomando um cigarro pelo filtro com as pontas dos dedos, acendendo-o e reclinando-se na banheira, a fumaça acre misturando-se ao vapor do banho, envenenando o irrespirável.

Um sorrisinho beatífico emoldurou o cigarro...


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Doutor Casas

Durante dois anos esteve em casa, diante do aparelho de televisão e de um computador. Excetuadas as horas de sono, mais duas horas gastas em higiene e alimentação (pratos congelados, saladas e frutas frescas, tudo comprado via ‘delivery’), mais duas horas dedicadas às compras, pagamento de contas, leitura de jornais, via computador, passou todas as horas restantes de todos os dias, de segundas a sábados, diante do televisor e do computador.
Feitas as contas, resultavam em pelo menos doze horas/dia, diante dos monitores da TV e do computador.
Aos domingos, a rotina mudava um pouco: em algumas manhãs, corridas da Fórmula I e, ‘carreras son carreras’!

E futebol à tarde.

Se não, algum joguinho no computador, ou alguma revisão de algum ponto mais difícil da sua matéria de estudo.
Porque naquelas 12 horas diárias, estudava.

Profunda, detalhada, minuciosamente todos os lances, todas as falas, todos os eventos previstos e, sobretudo, os imprevistos; todas as hipóteses e alternativas de sua matéria.

E anotava tudo em seu computador.

E indexava.

E compilava por número da lição e por palavra.

E buscava recorrências, similaridades, eventuais discrepâncias.

E quais alternativas sugeridas por quem, e quais haviam sido aceitas e quais rejeitadas e porque, e todas as interligações entre os motivos das rejeições com outras situações de outras lições, em que as mesmas ou muito parecidas condições ou sugestões houvessem surgido e, por sua vez, sido aceitas ou rejeitadas.
E registrava tudo.

E, freqüentemente, recorria a um dos muitos livros que comprara para tirar dúvida ou para obter informação que lhe parecera faltar na “lição filmada”.

E, quase ao final dos dois anos, passou a contar também com um livro e correlacionava situações reais às vistas na televisão.
Milhares de megabytes estocados em dois discos rígidos, e o terceiro andava a meio, no entanto, não necessitaria de um quarto: seu cronograma estava praticamente cumprido.

Dois anos de estudo intenso, intensivo, “full imersion”, profundo.
Poderia, em breve, partir para o próximo passo de seu projeto.
Havia já encomendado os materiais de que necessitaria para o próximo passo.

Roupas, acessórios, um diploma falso com toda a pinta de autêntico, modelos de documentos diversos, carteiras disso e daquilo, além de um convincente CRM, em nome do doutor Gregório Casas.
Havia pesquisado – na internet – e considerado que, embora Casa ficasse mais de acordo com o seu modelo, não havia nenhum “José Casa” no Google e apenas uma “A* M* Casa”, o que era muito pouco e, portanto, arriscado.

Já o nome “Casas”, descobrira, é o 194º mais comum na Espanha!

Pronto, podia alegar – e documentar – uma origem hispânica, por que não?

Além do que, era-lhe odioso qualquer fanatismo: por mais que admirasse seu modelo, não sacrificaria sua missão na vida pelo preciosismo de respeitar o nome e não incluir o ‘s’ da verossimilhança!
O Doutor House, de qualquer forma, não saberia entender!Tinha certeza!

Afinal, passara dois anos assistindo e assistindo e tornando a assistir os episódios da série, suas “aulas filmadas de medicina diagnóstica”, sua especialidade.

Supunha conhecer Gregory House melhor que o próprio autor da série.
Descobrira a maravilha de não ter que por a mão, sequer ter que olhar para uma pessoa doente, desde que houvesse quem lhe descrevesse sintomas.

Dados os sintomas, bastava buscar na série de televisão a doença ou possíveis doenças que tivessem possibilidade de ter acometido o paciente desconhecido!

Sem vestibular!

Sem cinco anos de mensalidades!

Ou pior, ou melhor, sem cadáveres de verdade a dissecar...
E sendo já capaz de calcular probabilidades e indicar o que tivesse mais chance de resultado, sem... SEM ter que passar pelos sobressaltos intermediários que os filmes mostram!

Que maravilha!

Antes de começar a exercer a medicina televisiva, à qual dedicara dois anos de vida, já se acreditava capaz de ir “direto aos finalmentes”, sem dar sustos nem paradas cardíacas nem nenhuma dessas mazelas de encher lingüiça, em ninguém!
Dado o sintoma, tome a cura!
E, caso não fosse assim tão fácil (desejava mesmo que não fosse, para ter graça na vida como nos filmes), recorreria aos seus arquivos, aos comandos “localizar” e “localizar todos”, e cotejar umas e outras entradas, e comparar dados e ser um médico televisivo cibernético! (“Cibernético”? pensou. “Talvez fosse melhor “tecnológico”, com o sentido que o pessoal “aiti” dá ao termo, ou, talvez, “médico televisivo informático”, termos óbvios, mas que traduziriam o novo ramo da medicina, do qual ele seria o fundador concreto, tendo o Dr. House como modelo e guia...” pensou).
MTI, não confundir com MIT, ou, em inglês, ITMD. Lindo!
Já havia selecionado onde iria começar a praticar sua especialidade: um hospital público, grande, com excelentes, mas poucos, profissionais; instalações mais ou menos e recursos mínimos.
Com tanta necessidade de médicos, ninguém iria perder muito tempo em cotejar informações e verificar nada.

Num hospital grande, poderia escolher: PS, oncologia, neuro, pediatria, infecto, o diabo!

Só não queria traumatologia, coisa para mecânicos, nem dermatologia, coisa para vagabundos (ouvira certa vez de uma colega que estudaria medicina, e faria dermato, porque não precisaria dar plantão nem seria chamada no meio da noite para nada!).
Num hospital grande, como aquele que escolhera, sempre há consultórios vazios, ou porque o médico está em férias ou porque não há médico mesmo.
Preparou-se.

Numa sexta-feira, fez sua festa de formatura, com direito a discurso, auto-entrega de diplomas e documentos e brinde a champanhe.
Na segunda, de manhã foi para o hospital.

Preparara-se psicológica e fisicamente.

Havia comprado uma palmilha, que o obrigava a mancar um pouco.

Nada exagerado.

Sem bengala.

Não queria chamar a atenção para isso, era uma coisa mais para sua satisfação pessoal, para encarnar o papel, sem deixar de ser ele mesmo, o Dr. Gregório Casas.

Deixou a barba por fazer no final de semana, o ponto certo para compor a personagem que agora seria seu alter ego.

Ou, quem sabe, ele seria o do Dr. Gregório. Gregório Casas. Espanhol.

Calça jeans, jaleco branco, auscultador pendurado no pescoço, só para constar.
Foi.

Assumiu um consultório. Apresentou-se à enfermeira do andar.

Foi à cantina e, ouvindo a discussão entre um médico e uma médica, a respeito dos estranhos sintomas de um paciente qualquer, entrou no papel.
Interveio.

Lamentavelmente, havia escolhido um hospital grande, com todas as especialidades.

Meia hora depois estava, devidamente medicado, guardado na psiquiatria...

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Das Crônicas de Curitiba

O trabalho tem me levado onde necessita.
Tenho trabalhado em São Paulo (Capital, Interior, Litoral e AbC - na verdade, apenas nos Santos André e Caetano -, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraná.
Trabalhei, morei e vivi durante dois anos e meio em Curitiba.
As crônicas talvez pretendam exorcizar a decepção, sublimar a frustração, vá saber...
Enfim, a elas.

Capítulo II - Dirigir em Curitiba (cont.)

Outro problema, além de saber para onde ir, é saber para onde os curitibanos vão.
Se for domingo à tarde, é fácil: a pé, vão ao jogo do Atlético. De carro, vão ao shopping (se têm dinheiro, ao Shopping Crystal, se não, ao Barigüi, onde o estacionamento é gratuito e se estaciona no estacionamento, e junto às paredes, sobre as faixas de separação das ruas internas, naquele canto, neste canto, ou simplesmente não se estaciona, porque superlota, e aí se vai estacionar no Carrefour em frente, ou na rua. Que acabam lotando também).
Não sendo domingo à tarde, é difícil saber aonde vão, porque não usam a seta.
A impressão é que não querem que os outros saibam para onde vão.
Então, não sinalizam.
De repente, o sujeito da frente vira.
Simplesmente.
Se for para uma outra rua, menos mal.
Mas fazem o mesmo quando entram numa garagem ou quando estacionam. Simplesmente o fazem, sem mais aquela.
E tome de freada brusca ou golpe de direção, para escapar de porrar um porra desses...
E mais, falar ao celular dirigindo parece que é obrigatório!
É impressionante a quantidade de pessoas que o fazem.
Assim como beber (chego lá).
Outra questão é que todas as curvas, em Curitiba, são abertas. Por definição.
Uma rua estreita, larga, não importa: o motorista curitibano vai sempre lá do outro lado da rua para fazer a curva.
Tem-se a impressão de que sempre tenta atropelar o pedestre que está quase chegando à outra calçada.
Vive tentando um strike! (às vezes consegue...)
Ai de quem entra junto de um curitibano numa curva: ou freia, ou sobe na calçada ou tromba.
É impossível a dois curitibanos, por maior que seja o espaço, e mesmo estando lado a lado, fazerem uma curva simultaneamente.
Aqui todo mundo dirige ônibus bi articulado, mesmo que seja um Ka.
Outro destaque são os semáforos (faróis, sinaleiras etc) que, embora sejam iguais no mundo todo, em Curitiba têm uma interpretação exclusiva:
Verde = Ande; Amarelo = Corra; Vermelho = Voe!
Então, jamais, jamais arranque ao abrir o sinal verde!
Há o risco de ser morto pelo sujeito que enfiou o pé embaixo para aproveitar aquele restinho de sinal nitidamente amarelo PARA ELE!
Porque o amarelo tem dono, não é amarelo igual para os dois lados: o amarelo do lado que estava verde é uma espécie de prorrogação, assim como o vermelho é uma continuidade do amarelo, portanto...
Ora, isso, associado às horríveis calçadas de Curitiba – quase todas as ruas têm calçadas de paralelepípedos, o que torna impossível andar de chinelo, sandália, de sapato de salto, puxando mala, empurrando carrinho ou cadeira de roooddasss e, em qualquer caso, em dia de chuva, porque, molhadas, são um sabão essas calçadas – que fazem com que muita gente ande pela rua, o que provoca uma enorme quantidade de atropelamentos.
Parece que atropelar é o esporte típico.
Uma rádio local faz campanha para que se respeitem os semáforos.
Explica o sentido universal do amarelo e diz quantos atropelamentos houve, desde o começo do ano.
E não dá outra: os motoristas ouvem e adotam o resoluto princípio de quebrar a marca! Só pode ser!
Como é sabido, curitibano é absolutamente provinciano e pequeno burguês e qualquer um acha que é e que pode mais que outro qualquer um, ao menos até que se cotejem os sobrenomes.
E, portanto, ninguém dá preferência para ninguém, porque, como a preferência é de cada um, em relação a todos os demais, e vice-versa, ninguém tem vez.
Assim, para sair da garagem e entrar no trânsito, ou se tem muita paciência ou muita coragem (ou sorte, por exemplo, de se entrar no exato instante em que um semáforo interrompe, finalmente, o fluxo de um lado, e o do outro lado ainda não está em cima do infeliz que quer trafegar).
Não apenas não dão vez, como aceleram para impedir que se entre no tráfego!
Um verdadeiro curitibano não admite ser pego distraído e poder ser visto pelos outros como um frouxo que deixou alguém entrar na sua frente, no trânsito.
Pode parecer exagero, mas é tão verdade que, outro dia, semana passada, parei na Av. Batel, sentido bairro, para que uma senhora, que vinha dirigindo em sentido oposto, com o carro parado no meio da rua, pudesse passar pela minha frente e entrar onde quer que fosse.
Parei.
O trânsito parou atrás de mim, e a dona não ia.
Pisquei o farol do carro, e ela continuou travada.
A impressão era de que ela achava que, quando estivesse bem na minha frente, eu arremeteria e passaria através dela e do carro dela, com uma faca entre os dentes e um riso malévolo!
Como a dona não ia, fiquei acenando, fazendo sinal com a mão para que passasse.
Ela relutou.
Tinha medo.
Então, encheu-se de brios e pisou fundo:
Cantando pneus, foi de zero a cem e, num átimo, estava na garagem.
Deve ter respirado, aliviada por ter sido tão esperta e me enganado: eu não consegui pegá-la a meia nau!
Os outros motoristas, os que estavam atrás de mim, e os que estavam atrás dela, buzinando e xingando, devem ter pensado que eu sou um rematado idiota, primeiro, por ter dado passagem, depois, por não ter aproveitado para, no mínimo, dar um susto assustador na dona.
E, pior, senti-me mesmo um idiota e saí xingando todo mundo!
Mais uma, que não é privilégio, mas é muito, muito praticada, é a contramão para aproveitar que está pertinho.
Então, como está perto a esquina da rua em que se quer entrar, não faz mal que a rua em que se está, naquele sentido, seja contramão...
O que são 50 ou 100m de contramão? Nada!
É claro que se poderia ir de ré.
E aí, “moonwalk” é contramão?
Não!
Então!
Agora, pegar a contramão dentro do shopping, para chegar às (poucas) vagas, antes dos outros trouxas que seguem as setas de sentido, faz sentido?!
Em Curitiba, faz.
Assim como trafegar na BR (numa BR), com um caminhão, por mais de 1 km, na contramão.
No mínimo, para aparecer no Fantástico.
Conseguiu!

Culpa Fenotípica

Já telefonara a todas as Ópticas da cidade e das cidades mais próximas.
Nenhuma tinha, nem prá remédio, e ninguém sabia onde poderia comprar.
Partia então para a compra “on line”, via internet, apesar de meio arredia.
Não por não confiar na seriedade, mas por não confiar na fidelidade das cores.
Já havia se enganado antes em compras internéticas.
As flores tinham uma cor azul linda no monitor, mas, quando viu o vaso à noite, apesar de belas, não tinham aquela cor “monitorada”.
E, no caso, a cor era tudo!
Então, virou e revirou.
E não achou um par sequer de lentes pretas ou marrons – castanhas, no caso -, só azul, verde, verde ice, ocre.
- Já pensou – pensou - lentes de contato ocre!? Sobre olhos azuis, como os meus (dela)? Vai que ficassem, sei lá, roxas! Deus me livre!
Com o cabelo fora bem mais fácil.
Na farmácia havia mais tintura para cabelo do que remédio.
Escolhera um tom castanho claro, para não radicalizar.
De família lituano-polonesa, nascida e criada na Vila Zelina, tinha os cabelos louros bem claros e os olhos bem azuis.
Por isso que vinha se sentindo assim, como dizer, culpada!
Havia reparado que nem o Dim Dim, cobrador do ônibus de todas as manhãs, conhecido de todos os passageiros e conhecedor de todos eles, sempre os mesmos, nos mesmos pontos e horários, e sempre tão solícito e bem humorado, conversando com o motorista através dos sinais de moeda batida no balaústre do buzum, nem ele a cumprimentava mais!
O mesmo com relação aos outros passageiros.
Aliás, era sair da Vila Zelina para ser olhada com desconfiança ou até com raiva.
Ou seria neura?
Tingira os cabelos e só saia de óculos escuros, ainda que fosse muito cedo e as lâmpadas das ruas ainda estivessem acesas e o sol apagado; ou fosse tarde, quando voltava do trabalho, as luzes das ruas já acesas e o sol apagado.
Mas achara, finalmente, uma loja “on line” que tinha lentes grafite!
- Grafite! Pensou – vai ficar até bonito! Não é preto nem é cinza. Havia pensado em cinza, que havia à vontade, mas cinza, já vira, é quase azul.
Cor dos olhos: grafite! Ótimo!
Encomendou.
Pagou no cartão.
Quase trezentos reais.
E ainda havia que esperar quinze dias úteis, pagando o SEDEX.
Imagina se fosse entrega comum! Ainda quinze dias de angústia...
Graduação?
Ela não queria graduação alguma, não tinha problema de visão, mas a óptica não tinha lente de contato de grau zero.
Então, encomendou 0,25 para cada olho.
Fazer o quê? Esperava que não desse problema a longo prazo.
Também, pensou, a longo prazo essa crise já teria passado e sido esquecida e ela também.
Ingênua, não pensou que talvez houvesse milhares de pessoas em Curitiba e daí para o sul, pensando e sentindo como ela.
Daria até uma ONG dos Inocentes Culpados.
Por que ela se sentia culpada.
Culpada, mas inocente:
Também, como é que poderia imaginar, em agosto de 2008, que assinando aquele “contrato de compra e venda com pacto abjeto de hipoteca”, que fizera junto com o irmão, para “compor a renda”, sem o quê, o mano não poderia comprar a casinha do conjunto habitacional, lá pros lados de São Mateus, iria provocar a falência do tal do Merrilinxi?
E que, com a falência do Merrilinxi por causa dela ser uma subipraimi, fosse haver essa crise toda?
E mais, como é que ela poderia supor que, acontecendo tudo isso, o grande Presidente Calamar iria sacar que a culpa era de alguém louro de olhos azuis?
Que bom que ele não disse nomes!