Fúria

Um menino encapotado num casaco impermeável, passadas firmes pela calçada deserta, debaixo de uma chuva que não para nunca mais, fria, forte, noite a dentro.
Uns onze anos de idade, magricela, andando sob a chuva intensa de não se ver adiante, resoluto, rápido, sem correr, os olhinhos faiscando, com ou sem relâmpagos no céu preto, muito tarde para um garoto estar na rua.
Aliás, ninguém estava na rua, exceto o guarda-noturno, bicicleta encostada na porta do açougue, sob a marquise, encolhido, apitando de vez em quando, pró-forma, que, com aquele temporal, ninguém o ouviria mesmo.
O menino parou.

Diante da porta do sobradinho de conjunto habitacional, geminado, igual a outros vinte ou trinta acima e abaixo na rua, e em frente também; sob a varandinha que mais serve de suporte de vasos do que de abrigo de gente, até que abrem a porta e ele entra.
A mãe, com uma toalha numa das mãos, pede que espere, mas não.
Resoluto, determinado, segue nas mesmas passadas de há pouco.
A avó, com uma fumegante xícara de chá, o aroma de hortelã no ar, diz à filha que deixe.
Ela olhou nos olhos do menino, por um instante, quando entrava.

Os olhos negros estavam aparentemente mais negros, firmes.
- Ele está possuído! Diz a velha à mãe do garoto. – É fúria! Não adianta você fazer nem falar coisa nenhuma, enquanto ele não desencapetar disso. Deixa, filha, deixa...
A mãe do garoto fechou a porta e ficou parada, olhando o menino que subia a escada do sobrado, deixando um rastro de água pelo caminho, os tênis velhos, encharcados, fazendo chóc, chóc, e rangendo, a borracha molhada do solado no piso de lajotas de segunda, lisas, frias.
Nem uma palavra, o menino subiu e dirigiu-se ao quarto da frente da casa, dos pais.

Entrou no banheiro onde o homem, mergulhado numa banheira pequena, luxo do sobradinho, as pernas dobradas, cabeça e joelhos fora da água quente que enchia o banheiro de vapor, meio dormindo, um sorrisinho beatífico nos lábios finos.
Parado ao lado da banheira, o menino pôs na borda, com muito cuidado, dois maços de cigarros que tirou dos bolsos do casaco, e um isqueiro descartável, amarelo.
Abriu o zíper da calça e urinou um jato forte de urina retida há muito, na cabeça do pai que, sentindo o jorro quente, acomodou-se mais na banheira e esticou mais o sorrisinho.
De repente, abriu os olhos e recebeu neles a urina quente do garoto!
- Que porra é... – Agora, na boca suja!
Mergulhou a cabeça na banheira.

Meio levantou-se, indeciso, o ar lhe parecendo frio, titubeante, mãos na borda da banheira.
O menino saiu andando, fechando o zíper, enquanto o homem esbravejava, gritava e xingava no banheiro; a mãe subia as escadas correndo e gritando e querendo entender; a avó tomava o chá antes que esfriasse de vez e dizia a si mesma que era melhor deixar que a fúria geral passasse.
No banheiro ‘social’, o menino abriu o chuveiro e meteu-se na água quente, completamente vestido.

Depois de alguns minutos, sentindo-se aquecido, tirou tênis, meias, toda a roupa, que foi amontoada sobre a parede do box de acrílico e, a cada arremesso, uma crista de pingos d’água, saída das peças de roupa, molhava o teto, a parede em frente, a porta e o chão do banheiro.
Nu, levantou o rosto para a água quente, lembrou-se do homem e gargalhou!
A risada alta, infanto-juvenil, forte, quase convulsiva, espalhou-se pelo sobradinho.
Na cozinha, aguardando com o chá num bule de ferro ágate azul, com o esmalte meio machucado, a tampa amassada de tantas batalhas de cozinha, a avó disse a si mesma:
- Pronto! Passou! O diabo vai ser o porqueira do pai desse menino agora...
Na banheira, meio grogue, o homem não era capaz de concluir se havia sonhado, se havia sido mijado ou se havia se afogado...
Dois maços de cigarros na beira da banheira.
“Que bom! Não vou precisar sair para comprar... bom, eu não iria mesmo de qualquer jeito: mandava esse bosta desse moleque...” pensou, abrindo um dos maços, tomando um cigarro pelo filtro com as pontas dos dedos, acendendo-o e reclinando-se na banheira, a fumaça acre misturando-se ao vapor do banho, envenenando o irrespirável.

Um sorrisinho beatífico emoldurou o cigarro...


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Um comentário:

  1. comentário: um pesadelo, um sonho, um texto onírico, em algum momento rom

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