Capítulo I - Dirigir em Curitiba

“...não permita Deus que eu morra, Sem que volte para São Paulo...”
Oswald de Andrade


Para um paulistano, a primeira impressão é de que seria muito fácil: ruas bem calçadas, sem a buraqueira ou remendeira mal feita que há em SP, quase todas as ruas e avenidas de mão única, e quase tudo muito reto, direto e certo.

Mas a primeira impressão é logo substituída por segunda e por terceira, e mais...

A segunda é relativa à sinalização: além de rara, ridícula!

Há placas bilíngües, em português e em inglês, e pérolas como “Parque Barigui” “Barigui Park”, e “Santa Felicidade” e “Santa Felicidade”.

Ué?! Não seria “Saint Felicity” ou “Saint Happiness” ou “Holly Happiness” or something like isso?

Se a Ópera de Arame é Wire Opera, porque não?

Vai entender...

Depois, como as pipocas, uma placa aqui, ali, uma placa além, esparsas, de sorte que é muito fácil se perder.

Além do que, as ruas são, literalmente, quilométricas, atravessam a cidade.

Mas algumas são interrompidas e, embora acabem, sejam becos sem saída, continuam depois da interrupção.

Mesmo que depois de dezenas de metros, por exemplo, com dois ou três edifícios entre um segmento e outro, continuem com o mesmo nome e numeração contínua.

Quer dizer, o sujeito pega um roteiro via guia da internet, e dá de cara com uma portaria de edifício.

Voltar não pode, porque é contramão.

Contornar é complicado, porque nunca se sabe qual das próximas (direita? esquerda?) é mão para onde (parece que nunca é aquela que parece).Sinalização não há, então, é arriscar.

Perguntar é besteira, porque, aparentemente, ninguém nunca sabe nada.

Impressionante a má vontade para dar informação.

O “não sei”, dito sem nem olhar quem pergunta ou com ar de desdém ou de não é problema meu, é padrão.

Frentista de posto de gasolina também nunca sabe nada das redondezas.

Taxista sabe, mas informa mal e porcamente, ou não informa.

E é besteira telefonar para o lugar aonde se vai e pedir referências e informação sobre como se chegar lá de carro, porque as informações são sempre truncadas ou codificadas:

- Pega a rápida!

Rápida? Que Rápida?

- É a avenida que vai do fim da Visconde até ...Visconde?

Qual Visconde? E o nome da rua não deve ser Rápida, né?

- Não! A Rápida tem nome, mas eu não sei. Todo mundo conhece por Rápida.

Sim, todo mundo conhece, menos quem não conhece...

E é tudo assim: a Visconde, a rápida, a BR (há pelo menos duas BRs – 116 e 277; viscondes há sete, “a Visconde” é a do de Guarapuava).

É claro que toda cidade deste país tem sua rua ou avenida Sete, sua Praça XV (15, não “chísve”, que é marca de uísque); sua Brigadeiro ou Marechal.

Mas, exatamente por isso, quase todo mundo sabe explicar e explica.

Exceto em Curitiba, onde o “foda-se” é ligado no automático de manhã, e... foda-se!

Então, é preciso paciência, mas outro tipo de paciência, diferente da de SP, onde até quem nunca foi a lugar nenhum, se tiver um mínimo de perspicácia e souber ler a sinalização, vai e chega a qualquer lugar.


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Fúria

Um menino encapotado num casaco impermeável, passadas firmes pela calçada deserta, debaixo de uma chuva que não para nunca mais, fria, forte, noite a dentro.
Uns onze anos de idade, magricela, andando sob a chuva intensa de não se ver adiante, resoluto, rápido, sem correr, os olhinhos faiscando, com ou sem relâmpagos no céu preto, muito tarde para um garoto estar na rua.
Aliás, ninguém estava na rua, exceto o guarda-noturno, bicicleta encostada na porta do açougue, sob a marquise, encolhido, apitando de vez em quando, pró-forma, que, com aquele temporal, ninguém o ouviria mesmo.
O menino parou.

Diante da porta do sobradinho de conjunto habitacional, geminado, igual a outros vinte ou trinta acima e abaixo na rua, e em frente também; sob a varandinha que mais serve de suporte de vasos do que de abrigo de gente, até que abrem a porta e ele entra.
A mãe, com uma toalha numa das mãos, pede que espere, mas não.
Resoluto, determinado, segue nas mesmas passadas de há pouco.
A avó, com uma fumegante xícara de chá, o aroma de hortelã no ar, diz à filha que deixe.
Ela olhou nos olhos do menino, por um instante, quando entrava.

Os olhos negros estavam aparentemente mais negros, firmes.
- Ele está possuído! Diz a velha à mãe do garoto. – É fúria! Não adianta você fazer nem falar coisa nenhuma, enquanto ele não desencapetar disso. Deixa, filha, deixa...
A mãe do garoto fechou a porta e ficou parada, olhando o menino que subia a escada do sobrado, deixando um rastro de água pelo caminho, os tênis velhos, encharcados, fazendo chóc, chóc, e rangendo, a borracha molhada do solado no piso de lajotas de segunda, lisas, frias.
Nem uma palavra, o menino subiu e dirigiu-se ao quarto da frente da casa, dos pais.

Entrou no banheiro onde o homem, mergulhado numa banheira pequena, luxo do sobradinho, as pernas dobradas, cabeça e joelhos fora da água quente que enchia o banheiro de vapor, meio dormindo, um sorrisinho beatífico nos lábios finos.
Parado ao lado da banheira, o menino pôs na borda, com muito cuidado, dois maços de cigarros que tirou dos bolsos do casaco, e um isqueiro descartável, amarelo.
Abriu o zíper da calça e urinou um jato forte de urina retida há muito, na cabeça do pai que, sentindo o jorro quente, acomodou-se mais na banheira e esticou mais o sorrisinho.
De repente, abriu os olhos e recebeu neles a urina quente do garoto!
- Que porra é... – Agora, na boca suja!
Mergulhou a cabeça na banheira.

Meio levantou-se, indeciso, o ar lhe parecendo frio, titubeante, mãos na borda da banheira.
O menino saiu andando, fechando o zíper, enquanto o homem esbravejava, gritava e xingava no banheiro; a mãe subia as escadas correndo e gritando e querendo entender; a avó tomava o chá antes que esfriasse de vez e dizia a si mesma que era melhor deixar que a fúria geral passasse.
No banheiro ‘social’, o menino abriu o chuveiro e meteu-se na água quente, completamente vestido.

Depois de alguns minutos, sentindo-se aquecido, tirou tênis, meias, toda a roupa, que foi amontoada sobre a parede do box de acrílico e, a cada arremesso, uma crista de pingos d’água, saída das peças de roupa, molhava o teto, a parede em frente, a porta e o chão do banheiro.
Nu, levantou o rosto para a água quente, lembrou-se do homem e gargalhou!
A risada alta, infanto-juvenil, forte, quase convulsiva, espalhou-se pelo sobradinho.
Na cozinha, aguardando com o chá num bule de ferro ágate azul, com o esmalte meio machucado, a tampa amassada de tantas batalhas de cozinha, a avó disse a si mesma:
- Pronto! Passou! O diabo vai ser o porqueira do pai desse menino agora...
Na banheira, meio grogue, o homem não era capaz de concluir se havia sonhado, se havia sido mijado ou se havia se afogado...
Dois maços de cigarros na beira da banheira.
“Que bom! Não vou precisar sair para comprar... bom, eu não iria mesmo de qualquer jeito: mandava esse bosta desse moleque...” pensou, abrindo um dos maços, tomando um cigarro pelo filtro com as pontas dos dedos, acendendo-o e reclinando-se na banheira, a fumaça acre misturando-se ao vapor do banho, envenenando o irrespirável.

Um sorrisinho beatífico emoldurou o cigarro...


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Doutor Casas

Durante dois anos esteve em casa, diante do aparelho de televisão e de um computador. Excetuadas as horas de sono, mais duas horas gastas em higiene e alimentação (pratos congelados, saladas e frutas frescas, tudo comprado via ‘delivery’), mais duas horas dedicadas às compras, pagamento de contas, leitura de jornais, via computador, passou todas as horas restantes de todos os dias, de segundas a sábados, diante do televisor e do computador.
Feitas as contas, resultavam em pelo menos doze horas/dia, diante dos monitores da TV e do computador.
Aos domingos, a rotina mudava um pouco: em algumas manhãs, corridas da Fórmula I e, ‘carreras son carreras’!

E futebol à tarde.

Se não, algum joguinho no computador, ou alguma revisão de algum ponto mais difícil da sua matéria de estudo.
Porque naquelas 12 horas diárias, estudava.

Profunda, detalhada, minuciosamente todos os lances, todas as falas, todos os eventos previstos e, sobretudo, os imprevistos; todas as hipóteses e alternativas de sua matéria.

E anotava tudo em seu computador.

E indexava.

E compilava por número da lição e por palavra.

E buscava recorrências, similaridades, eventuais discrepâncias.

E quais alternativas sugeridas por quem, e quais haviam sido aceitas e quais rejeitadas e porque, e todas as interligações entre os motivos das rejeições com outras situações de outras lições, em que as mesmas ou muito parecidas condições ou sugestões houvessem surgido e, por sua vez, sido aceitas ou rejeitadas.
E registrava tudo.

E, freqüentemente, recorria a um dos muitos livros que comprara para tirar dúvida ou para obter informação que lhe parecera faltar na “lição filmada”.

E, quase ao final dos dois anos, passou a contar também com um livro e correlacionava situações reais às vistas na televisão.
Milhares de megabytes estocados em dois discos rígidos, e o terceiro andava a meio, no entanto, não necessitaria de um quarto: seu cronograma estava praticamente cumprido.

Dois anos de estudo intenso, intensivo, “full imersion”, profundo.
Poderia, em breve, partir para o próximo passo de seu projeto.
Havia já encomendado os materiais de que necessitaria para o próximo passo.

Roupas, acessórios, um diploma falso com toda a pinta de autêntico, modelos de documentos diversos, carteiras disso e daquilo, além de um convincente CRM, em nome do doutor Gregório Casas.
Havia pesquisado – na internet – e considerado que, embora Casa ficasse mais de acordo com o seu modelo, não havia nenhum “José Casa” no Google e apenas uma “A* M* Casa”, o que era muito pouco e, portanto, arriscado.

Já o nome “Casas”, descobrira, é o 194º mais comum na Espanha!

Pronto, podia alegar – e documentar – uma origem hispânica, por que não?

Além do que, era-lhe odioso qualquer fanatismo: por mais que admirasse seu modelo, não sacrificaria sua missão na vida pelo preciosismo de respeitar o nome e não incluir o ‘s’ da verossimilhança!
O Doutor House, de qualquer forma, não saberia entender!Tinha certeza!

Afinal, passara dois anos assistindo e assistindo e tornando a assistir os episódios da série, suas “aulas filmadas de medicina diagnóstica”, sua especialidade.

Supunha conhecer Gregory House melhor que o próprio autor da série.
Descobrira a maravilha de não ter que por a mão, sequer ter que olhar para uma pessoa doente, desde que houvesse quem lhe descrevesse sintomas.

Dados os sintomas, bastava buscar na série de televisão a doença ou possíveis doenças que tivessem possibilidade de ter acometido o paciente desconhecido!

Sem vestibular!

Sem cinco anos de mensalidades!

Ou pior, ou melhor, sem cadáveres de verdade a dissecar...
E sendo já capaz de calcular probabilidades e indicar o que tivesse mais chance de resultado, sem... SEM ter que passar pelos sobressaltos intermediários que os filmes mostram!

Que maravilha!

Antes de começar a exercer a medicina televisiva, à qual dedicara dois anos de vida, já se acreditava capaz de ir “direto aos finalmentes”, sem dar sustos nem paradas cardíacas nem nenhuma dessas mazelas de encher lingüiça, em ninguém!
Dado o sintoma, tome a cura!
E, caso não fosse assim tão fácil (desejava mesmo que não fosse, para ter graça na vida como nos filmes), recorreria aos seus arquivos, aos comandos “localizar” e “localizar todos”, e cotejar umas e outras entradas, e comparar dados e ser um médico televisivo cibernético! (“Cibernético”? pensou. “Talvez fosse melhor “tecnológico”, com o sentido que o pessoal “aiti” dá ao termo, ou, talvez, “médico televisivo informático”, termos óbvios, mas que traduziriam o novo ramo da medicina, do qual ele seria o fundador concreto, tendo o Dr. House como modelo e guia...” pensou).
MTI, não confundir com MIT, ou, em inglês, ITMD. Lindo!
Já havia selecionado onde iria começar a praticar sua especialidade: um hospital público, grande, com excelentes, mas poucos, profissionais; instalações mais ou menos e recursos mínimos.
Com tanta necessidade de médicos, ninguém iria perder muito tempo em cotejar informações e verificar nada.

Num hospital grande, poderia escolher: PS, oncologia, neuro, pediatria, infecto, o diabo!

Só não queria traumatologia, coisa para mecânicos, nem dermatologia, coisa para vagabundos (ouvira certa vez de uma colega que estudaria medicina, e faria dermato, porque não precisaria dar plantão nem seria chamada no meio da noite para nada!).
Num hospital grande, como aquele que escolhera, sempre há consultórios vazios, ou porque o médico está em férias ou porque não há médico mesmo.
Preparou-se.

Numa sexta-feira, fez sua festa de formatura, com direito a discurso, auto-entrega de diplomas e documentos e brinde a champanhe.
Na segunda, de manhã foi para o hospital.

Preparara-se psicológica e fisicamente.

Havia comprado uma palmilha, que o obrigava a mancar um pouco.

Nada exagerado.

Sem bengala.

Não queria chamar a atenção para isso, era uma coisa mais para sua satisfação pessoal, para encarnar o papel, sem deixar de ser ele mesmo, o Dr. Gregório Casas.

Deixou a barba por fazer no final de semana, o ponto certo para compor a personagem que agora seria seu alter ego.

Ou, quem sabe, ele seria o do Dr. Gregório. Gregório Casas. Espanhol.

Calça jeans, jaleco branco, auscultador pendurado no pescoço, só para constar.
Foi.

Assumiu um consultório. Apresentou-se à enfermeira do andar.

Foi à cantina e, ouvindo a discussão entre um médico e uma médica, a respeito dos estranhos sintomas de um paciente qualquer, entrou no papel.
Interveio.

Lamentavelmente, havia escolhido um hospital grande, com todas as especialidades.

Meia hora depois estava, devidamente medicado, guardado na psiquiatria...

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Das Crônicas de Curitiba

O trabalho tem me levado onde necessita.
Tenho trabalhado em São Paulo (Capital, Interior, Litoral e AbC - na verdade, apenas nos Santos André e Caetano -, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraná.
Trabalhei, morei e vivi durante dois anos e meio em Curitiba.
As crônicas talvez pretendam exorcizar a decepção, sublimar a frustração, vá saber...
Enfim, a elas.

Capítulo II - Dirigir em Curitiba (cont.)

Outro problema, além de saber para onde ir, é saber para onde os curitibanos vão.
Se for domingo à tarde, é fácil: a pé, vão ao jogo do Atlético. De carro, vão ao shopping (se têm dinheiro, ao Shopping Crystal, se não, ao Barigüi, onde o estacionamento é gratuito e se estaciona no estacionamento, e junto às paredes, sobre as faixas de separação das ruas internas, naquele canto, neste canto, ou simplesmente não se estaciona, porque superlota, e aí se vai estacionar no Carrefour em frente, ou na rua. Que acabam lotando também).
Não sendo domingo à tarde, é difícil saber aonde vão, porque não usam a seta.
A impressão é que não querem que os outros saibam para onde vão.
Então, não sinalizam.
De repente, o sujeito da frente vira.
Simplesmente.
Se for para uma outra rua, menos mal.
Mas fazem o mesmo quando entram numa garagem ou quando estacionam. Simplesmente o fazem, sem mais aquela.
E tome de freada brusca ou golpe de direção, para escapar de porrar um porra desses...
E mais, falar ao celular dirigindo parece que é obrigatório!
É impressionante a quantidade de pessoas que o fazem.
Assim como beber (chego lá).
Outra questão é que todas as curvas, em Curitiba, são abertas. Por definição.
Uma rua estreita, larga, não importa: o motorista curitibano vai sempre lá do outro lado da rua para fazer a curva.
Tem-se a impressão de que sempre tenta atropelar o pedestre que está quase chegando à outra calçada.
Vive tentando um strike! (às vezes consegue...)
Ai de quem entra junto de um curitibano numa curva: ou freia, ou sobe na calçada ou tromba.
É impossível a dois curitibanos, por maior que seja o espaço, e mesmo estando lado a lado, fazerem uma curva simultaneamente.
Aqui todo mundo dirige ônibus bi articulado, mesmo que seja um Ka.
Outro destaque são os semáforos (faróis, sinaleiras etc) que, embora sejam iguais no mundo todo, em Curitiba têm uma interpretação exclusiva:
Verde = Ande; Amarelo = Corra; Vermelho = Voe!
Então, jamais, jamais arranque ao abrir o sinal verde!
Há o risco de ser morto pelo sujeito que enfiou o pé embaixo para aproveitar aquele restinho de sinal nitidamente amarelo PARA ELE!
Porque o amarelo tem dono, não é amarelo igual para os dois lados: o amarelo do lado que estava verde é uma espécie de prorrogação, assim como o vermelho é uma continuidade do amarelo, portanto...
Ora, isso, associado às horríveis calçadas de Curitiba – quase todas as ruas têm calçadas de paralelepípedos, o que torna impossível andar de chinelo, sandália, de sapato de salto, puxando mala, empurrando carrinho ou cadeira de roooddasss e, em qualquer caso, em dia de chuva, porque, molhadas, são um sabão essas calçadas – que fazem com que muita gente ande pela rua, o que provoca uma enorme quantidade de atropelamentos.
Parece que atropelar é o esporte típico.
Uma rádio local faz campanha para que se respeitem os semáforos.
Explica o sentido universal do amarelo e diz quantos atropelamentos houve, desde o começo do ano.
E não dá outra: os motoristas ouvem e adotam o resoluto princípio de quebrar a marca! Só pode ser!
Como é sabido, curitibano é absolutamente provinciano e pequeno burguês e qualquer um acha que é e que pode mais que outro qualquer um, ao menos até que se cotejem os sobrenomes.
E, portanto, ninguém dá preferência para ninguém, porque, como a preferência é de cada um, em relação a todos os demais, e vice-versa, ninguém tem vez.
Assim, para sair da garagem e entrar no trânsito, ou se tem muita paciência ou muita coragem (ou sorte, por exemplo, de se entrar no exato instante em que um semáforo interrompe, finalmente, o fluxo de um lado, e o do outro lado ainda não está em cima do infeliz que quer trafegar).
Não apenas não dão vez, como aceleram para impedir que se entre no tráfego!
Um verdadeiro curitibano não admite ser pego distraído e poder ser visto pelos outros como um frouxo que deixou alguém entrar na sua frente, no trânsito.
Pode parecer exagero, mas é tão verdade que, outro dia, semana passada, parei na Av. Batel, sentido bairro, para que uma senhora, que vinha dirigindo em sentido oposto, com o carro parado no meio da rua, pudesse passar pela minha frente e entrar onde quer que fosse.
Parei.
O trânsito parou atrás de mim, e a dona não ia.
Pisquei o farol do carro, e ela continuou travada.
A impressão era de que ela achava que, quando estivesse bem na minha frente, eu arremeteria e passaria através dela e do carro dela, com uma faca entre os dentes e um riso malévolo!
Como a dona não ia, fiquei acenando, fazendo sinal com a mão para que passasse.
Ela relutou.
Tinha medo.
Então, encheu-se de brios e pisou fundo:
Cantando pneus, foi de zero a cem e, num átimo, estava na garagem.
Deve ter respirado, aliviada por ter sido tão esperta e me enganado: eu não consegui pegá-la a meia nau!
Os outros motoristas, os que estavam atrás de mim, e os que estavam atrás dela, buzinando e xingando, devem ter pensado que eu sou um rematado idiota, primeiro, por ter dado passagem, depois, por não ter aproveitado para, no mínimo, dar um susto assustador na dona.
E, pior, senti-me mesmo um idiota e saí xingando todo mundo!
Mais uma, que não é privilégio, mas é muito, muito praticada, é a contramão para aproveitar que está pertinho.
Então, como está perto a esquina da rua em que se quer entrar, não faz mal que a rua em que se está, naquele sentido, seja contramão...
O que são 50 ou 100m de contramão? Nada!
É claro que se poderia ir de ré.
E aí, “moonwalk” é contramão?
Não!
Então!
Agora, pegar a contramão dentro do shopping, para chegar às (poucas) vagas, antes dos outros trouxas que seguem as setas de sentido, faz sentido?!
Em Curitiba, faz.
Assim como trafegar na BR (numa BR), com um caminhão, por mais de 1 km, na contramão.
No mínimo, para aparecer no Fantástico.
Conseguiu!

Culpa Fenotípica

Já telefonara a todas as Ópticas da cidade e das cidades mais próximas.
Nenhuma tinha, nem prá remédio, e ninguém sabia onde poderia comprar.
Partia então para a compra “on line”, via internet, apesar de meio arredia.
Não por não confiar na seriedade, mas por não confiar na fidelidade das cores.
Já havia se enganado antes em compras internéticas.
As flores tinham uma cor azul linda no monitor, mas, quando viu o vaso à noite, apesar de belas, não tinham aquela cor “monitorada”.
E, no caso, a cor era tudo!
Então, virou e revirou.
E não achou um par sequer de lentes pretas ou marrons – castanhas, no caso -, só azul, verde, verde ice, ocre.
- Já pensou – pensou - lentes de contato ocre!? Sobre olhos azuis, como os meus (dela)? Vai que ficassem, sei lá, roxas! Deus me livre!
Com o cabelo fora bem mais fácil.
Na farmácia havia mais tintura para cabelo do que remédio.
Escolhera um tom castanho claro, para não radicalizar.
De família lituano-polonesa, nascida e criada na Vila Zelina, tinha os cabelos louros bem claros e os olhos bem azuis.
Por isso que vinha se sentindo assim, como dizer, culpada!
Havia reparado que nem o Dim Dim, cobrador do ônibus de todas as manhãs, conhecido de todos os passageiros e conhecedor de todos eles, sempre os mesmos, nos mesmos pontos e horários, e sempre tão solícito e bem humorado, conversando com o motorista através dos sinais de moeda batida no balaústre do buzum, nem ele a cumprimentava mais!
O mesmo com relação aos outros passageiros.
Aliás, era sair da Vila Zelina para ser olhada com desconfiança ou até com raiva.
Ou seria neura?
Tingira os cabelos e só saia de óculos escuros, ainda que fosse muito cedo e as lâmpadas das ruas ainda estivessem acesas e o sol apagado; ou fosse tarde, quando voltava do trabalho, as luzes das ruas já acesas e o sol apagado.
Mas achara, finalmente, uma loja “on line” que tinha lentes grafite!
- Grafite! Pensou – vai ficar até bonito! Não é preto nem é cinza. Havia pensado em cinza, que havia à vontade, mas cinza, já vira, é quase azul.
Cor dos olhos: grafite! Ótimo!
Encomendou.
Pagou no cartão.
Quase trezentos reais.
E ainda havia que esperar quinze dias úteis, pagando o SEDEX.
Imagina se fosse entrega comum! Ainda quinze dias de angústia...
Graduação?
Ela não queria graduação alguma, não tinha problema de visão, mas a óptica não tinha lente de contato de grau zero.
Então, encomendou 0,25 para cada olho.
Fazer o quê? Esperava que não desse problema a longo prazo.
Também, pensou, a longo prazo essa crise já teria passado e sido esquecida e ela também.
Ingênua, não pensou que talvez houvesse milhares de pessoas em Curitiba e daí para o sul, pensando e sentindo como ela.
Daria até uma ONG dos Inocentes Culpados.
Por que ela se sentia culpada.
Culpada, mas inocente:
Também, como é que poderia imaginar, em agosto de 2008, que assinando aquele “contrato de compra e venda com pacto abjeto de hipoteca”, que fizera junto com o irmão, para “compor a renda”, sem o quê, o mano não poderia comprar a casinha do conjunto habitacional, lá pros lados de São Mateus, iria provocar a falência do tal do Merrilinxi?
E que, com a falência do Merrilinxi por causa dela ser uma subipraimi, fosse haver essa crise toda?
E mais, como é que ela poderia supor que, acontecendo tudo isso, o grande Presidente Calamar iria sacar que a culpa era de alguém louro de olhos azuis?
Que bom que ele não disse nomes!