Doutor Casas

Durante dois anos esteve em casa, diante do aparelho de televisão e de um computador. Excetuadas as horas de sono, mais duas horas gastas em higiene e alimentação (pratos congelados, saladas e frutas frescas, tudo comprado via ‘delivery’), mais duas horas dedicadas às compras, pagamento de contas, leitura de jornais, via computador, passou todas as horas restantes de todos os dias, de segundas a sábados, diante do televisor e do computador.
Feitas as contas, resultavam em pelo menos doze horas/dia, diante dos monitores da TV e do computador.
Aos domingos, a rotina mudava um pouco: em algumas manhãs, corridas da Fórmula I e, ‘carreras son carreras’!

E futebol à tarde.

Se não, algum joguinho no computador, ou alguma revisão de algum ponto mais difícil da sua matéria de estudo.
Porque naquelas 12 horas diárias, estudava.

Profunda, detalhada, minuciosamente todos os lances, todas as falas, todos os eventos previstos e, sobretudo, os imprevistos; todas as hipóteses e alternativas de sua matéria.

E anotava tudo em seu computador.

E indexava.

E compilava por número da lição e por palavra.

E buscava recorrências, similaridades, eventuais discrepâncias.

E quais alternativas sugeridas por quem, e quais haviam sido aceitas e quais rejeitadas e porque, e todas as interligações entre os motivos das rejeições com outras situações de outras lições, em que as mesmas ou muito parecidas condições ou sugestões houvessem surgido e, por sua vez, sido aceitas ou rejeitadas.
E registrava tudo.

E, freqüentemente, recorria a um dos muitos livros que comprara para tirar dúvida ou para obter informação que lhe parecera faltar na “lição filmada”.

E, quase ao final dos dois anos, passou a contar também com um livro e correlacionava situações reais às vistas na televisão.
Milhares de megabytes estocados em dois discos rígidos, e o terceiro andava a meio, no entanto, não necessitaria de um quarto: seu cronograma estava praticamente cumprido.

Dois anos de estudo intenso, intensivo, “full imersion”, profundo.
Poderia, em breve, partir para o próximo passo de seu projeto.
Havia já encomendado os materiais de que necessitaria para o próximo passo.

Roupas, acessórios, um diploma falso com toda a pinta de autêntico, modelos de documentos diversos, carteiras disso e daquilo, além de um convincente CRM, em nome do doutor Gregório Casas.
Havia pesquisado – na internet – e considerado que, embora Casa ficasse mais de acordo com o seu modelo, não havia nenhum “José Casa” no Google e apenas uma “A* M* Casa”, o que era muito pouco e, portanto, arriscado.

Já o nome “Casas”, descobrira, é o 194º mais comum na Espanha!

Pronto, podia alegar – e documentar – uma origem hispânica, por que não?

Além do que, era-lhe odioso qualquer fanatismo: por mais que admirasse seu modelo, não sacrificaria sua missão na vida pelo preciosismo de respeitar o nome e não incluir o ‘s’ da verossimilhança!
O Doutor House, de qualquer forma, não saberia entender!Tinha certeza!

Afinal, passara dois anos assistindo e assistindo e tornando a assistir os episódios da série, suas “aulas filmadas de medicina diagnóstica”, sua especialidade.

Supunha conhecer Gregory House melhor que o próprio autor da série.
Descobrira a maravilha de não ter que por a mão, sequer ter que olhar para uma pessoa doente, desde que houvesse quem lhe descrevesse sintomas.

Dados os sintomas, bastava buscar na série de televisão a doença ou possíveis doenças que tivessem possibilidade de ter acometido o paciente desconhecido!

Sem vestibular!

Sem cinco anos de mensalidades!

Ou pior, ou melhor, sem cadáveres de verdade a dissecar...
E sendo já capaz de calcular probabilidades e indicar o que tivesse mais chance de resultado, sem... SEM ter que passar pelos sobressaltos intermediários que os filmes mostram!

Que maravilha!

Antes de começar a exercer a medicina televisiva, à qual dedicara dois anos de vida, já se acreditava capaz de ir “direto aos finalmentes”, sem dar sustos nem paradas cardíacas nem nenhuma dessas mazelas de encher lingüiça, em ninguém!
Dado o sintoma, tome a cura!
E, caso não fosse assim tão fácil (desejava mesmo que não fosse, para ter graça na vida como nos filmes), recorreria aos seus arquivos, aos comandos “localizar” e “localizar todos”, e cotejar umas e outras entradas, e comparar dados e ser um médico televisivo cibernético! (“Cibernético”? pensou. “Talvez fosse melhor “tecnológico”, com o sentido que o pessoal “aiti” dá ao termo, ou, talvez, “médico televisivo informático”, termos óbvios, mas que traduziriam o novo ramo da medicina, do qual ele seria o fundador concreto, tendo o Dr. House como modelo e guia...” pensou).
MTI, não confundir com MIT, ou, em inglês, ITMD. Lindo!
Já havia selecionado onde iria começar a praticar sua especialidade: um hospital público, grande, com excelentes, mas poucos, profissionais; instalações mais ou menos e recursos mínimos.
Com tanta necessidade de médicos, ninguém iria perder muito tempo em cotejar informações e verificar nada.

Num hospital grande, poderia escolher: PS, oncologia, neuro, pediatria, infecto, o diabo!

Só não queria traumatologia, coisa para mecânicos, nem dermatologia, coisa para vagabundos (ouvira certa vez de uma colega que estudaria medicina, e faria dermato, porque não precisaria dar plantão nem seria chamada no meio da noite para nada!).
Num hospital grande, como aquele que escolhera, sempre há consultórios vazios, ou porque o médico está em férias ou porque não há médico mesmo.
Preparou-se.

Numa sexta-feira, fez sua festa de formatura, com direito a discurso, auto-entrega de diplomas e documentos e brinde a champanhe.
Na segunda, de manhã foi para o hospital.

Preparara-se psicológica e fisicamente.

Havia comprado uma palmilha, que o obrigava a mancar um pouco.

Nada exagerado.

Sem bengala.

Não queria chamar a atenção para isso, era uma coisa mais para sua satisfação pessoal, para encarnar o papel, sem deixar de ser ele mesmo, o Dr. Gregório Casas.

Deixou a barba por fazer no final de semana, o ponto certo para compor a personagem que agora seria seu alter ego.

Ou, quem sabe, ele seria o do Dr. Gregório. Gregório Casas. Espanhol.

Calça jeans, jaleco branco, auscultador pendurado no pescoço, só para constar.
Foi.

Assumiu um consultório. Apresentou-se à enfermeira do andar.

Foi à cantina e, ouvindo a discussão entre um médico e uma médica, a respeito dos estranhos sintomas de um paciente qualquer, entrou no papel.
Interveio.

Lamentavelmente, havia escolhido um hospital grande, com todas as especialidades.

Meia hora depois estava, devidamente medicado, guardado na psiquiatria...

envie seus comentários: clique no link abaixo "n comentários" e comente

4 comentários:

  1. Muuuito bom!! Fico querendo mais sobre o Gregório e o corpo médico da ala da psquiatria. Deve dar um conto legal!!

    ResponderExcluir
  2. é! os conhecedores de tudo que dependem eternamente do google! em breve, não saberão nem quem são... vão precisar consultar o google antes de responder! a propósito: será que esta opinião poderá ser localizada pelo google? portanto: google, logo existo.
    abs, mestre Alboino

    ResponderExcluir
  3. "todo homem são é um doente que se ignora"; "há um encantamento na loucura, conhecido só dos loucos" (barão de itararé); "só sei que nada sei"(sócrates, cf. platão); "quem sabe de si, nesses bares escuros, quem sabe dos outros?" (aldir blanc); "quem sou eu?" (lúcio cardim, paulinho da viola e tantos outros).
    para uma pergunta milenar que continua e continua, ou são tantas as respostas possíveis ou há apenas uma, ainda não formulada.
    porém as respostas não dependem do compilador, ao contrário. elas existem antes da enciclopédia ou do google ou da bíblia da ocasião, qualquer que seja.
    etermamente é muito tempo. a alma é química e o ter, o ser e o vir a ser dependem só de se estar vivo. a morte liquida a questão.
    abs Anônimo

    ResponderExcluir
  4. "De médico e de louco todo mundo tem um pouco" (Anonimo)

    ResponderExcluir